27 de abril de 2009

Aos bibliotecários, com carinho.

Momentos sempre sofridos quando é preciso dar um jeito na falta de espaço doméstico: que livros ficam? que livros vão? Caiu em minhas mãos um livro que gostei muito 20 anos atrás, quando começava meu interesse por bibliotecas. Tem até valor afetivo, pois minha relação com bibliotecários, e principalmente bibliotecárias, se aprofundou muito nesse tempo. “Ordenar para Desordenar – Centros de Cultura e Bibliotecas Públicas” (Luiz Milanesi, 1986).

Decidi que este fica, e ficará ao lado de “A Nova Desordem Digital” (David Weinberger, 2007). Por três motivos: o primeiro é o binômio ordem-desordem (tensão permanente do yin-yang que todos enfrentamos um pouco mais ou um pouco menos, mas que define a existência do bibliotecário); o segundo é que o Weinberger dedicou expressamente seu livro aos bibliotecários (se você é bibliotecário, leia, ele vira o seu mundo de cabeça para baixo, abrindo novos espaços de crescimento). O terceiro é que ambos os livros têm uma visão crítica e humanista do fazer bibliotecário, o que contrasta com a visão solitária e periférica que muitas vezes acaba se apossando do ser bibliotecário.

Fiquei tentado a fazer reflexões sobre o que será dessa profissão, precursora de tantas práticas imprescindíveis para a gestão de conteúdo e do conhecimento. A realização, nesses 20 anos, da profecia marxista de “tudo que é sólido desmancha no ar”, não poderia deixar de causar estragos também sobre a identidade desse grupo profissional, e abrir caminho para o surgimento de algo que ainda não sabemos o que virá a ser.


Vamos a uma antropologia dos bibliotecários?

Perda de identidade: “biblio”tecários lidam a cada dia menos com “biblio”. O livro é apenas uma entre as mídias que se multiplicam rapidamente. Na Web ontem foi o blog, hoje o Twitter. Mas na biblioteca pública a “biblio” também cede há muito tempo para a gibiteca, e nas organizações a “biblio” se expande para a hemeroteca, a videoteca, a midiateca, a mapoteca, a blogosfera da empresa, seus wikis, seu acervo de powerpoints, em todas as áreas densas em conhecimento: marketing, TI, P&D, compras etc.


Então por que manter a persona de “biblio”tecário? O “biblio” do nome perde o sentido à medida que se expande o papel do profissional frente à diversidade de conteúdos que as novas gerações consomem nos seus processos de aprendizagem e de trabalho.


Será que este nome, tão preso a um objeto físico, o livro, não impede a ave de voar? Afinal, na organização, a expectativa das pessoas em relação ao “biblio”tecário é que ele cuide dos livros, e demandas latentes relacionadas ao tratamento mais amplo de informações acabam não acontecendo.


Por outro lado, a adoção do título “ciência da informaçao” nas universidades não significa que o profissional desenvolvido seja um “cientista da informação”, como ocorre na diplomação em algumas escolas. “Ãhã, cientista da informação? Sinto muito, não temos vagas”. A falta de um nome apropriado cria um vácuo identitário.


Por outro lado, competências essenciais para a organização da informação, como a de modelagem de dados, são ainda desconhecidas desses profissionais. O mesmo pode-se dizer de conceitos mais avançados de categorização dos objetos, como a classificação facetada (não tão nova, pois Ranganathan a introduziu há um século). Nos bons sites de comércio eletrônico (vide WebMotors) esses conceitos fazem toda a diferença, mas na organização da informação nas organizações e na sociedade eles ainda são pouco utilizados.


A profissão se bifurca. Nas bibliotecas públicas e escolares, e nas milhares de salas de leitura, pontos de cultura e outros nodos de acesso popular ao conhecimento, o “biblio”tecário necessário pode não ser aquele saído das escolas especializadas em “biblio”, e sim aquele com formação humanista e universal, capaz de sentir as necessidades de sua comunidade e oferecer, até nas situações mais simples, o livro certo no momento certo (”me dê um livro para a idade de 9 anos que trate de forma humanista da questão da prostituição”; sei lá se existe, mas deveria existir e, se não existe, é preciso construir processos com feedback que gerem encomenda para os autores).


O ítem acima traz uma demanda para o profissional sucessor do “biblio”tecário: que se incorpore coletivamente aos processos societais que pautam a produção literária. Ou seja, todo o ciclo de concepção, produção e circulação de um bem precioso para a construção do conhecimento.


A perda de identidade tem esse lado das oportunidades de incorporação de novas competências para o exercício de novos papéis. Em cada lugar, há o momento do salto quântico em que a crisálida pode se tornar borboleta, numa nova espécie com novo DNA: não mais para lidar apenas com bibliotecas nem com objetos físicos, e sim com seus conteúdos, quaisquer tipos de conteúdo físico ou virtual. Um mundo bem mais divertido: surgem padrões que nossas crianças já nascem conhecendo, como o de áudio em MP3. Aliás, nada melhor que o MP3 para a educação em competências informacionais básicas (título, autor, gênero, álbum…). Ou seja, os padrões bibliográficos tendem a se incorporar ao dia a dia das pessoas no seu consumo de bens culturais, e deixam de ser parte da linguagem hermética que tornava a profissão uma tribo.


A transição para uma nova identidade é complexa. Em meio a todas as oportunidades que exigem que se enxergue o novo, há um lado jurássico, como ocorre em qualquer atividade humana. O novo precisa conviver com o velho pacificamente, mas é preciso estar preparado para a possibilidade de que, em algum momento, haja a faísca da “destruição criativa” de Schumpeter. Em apenas um ano (2003) a indústria fonográfica perdeu 1/3 do seu faturamento em nível mundial. O impacto das mudanças sobre as expectativas do mercado de trabalho do bibliotecário não irá esperar que ele esteja preparado.


Nesse tempo acelerado que vivemos, levará pouco tempo para que os clientes das bibliotecas exijam o que já oferece a Ann Arbor Digital Library, por exemplo, que abre seus registros para permitir a colaboração dos seus próprios usuários no processo de indexação. Bibliotecas abertas, sem caixa preta de procedimentos esotéricos e enrijecidos à base de CDUs e CDDs.


Escolas de Ciência da Informação, que responsabilidade! Serem parteiras da nova borboleta, e oferecerem capacitação para as novas competências, pois o mundo do trabalho tem horror ao vácuo. Esse espaço será ocupado por profissionais que entendam a estrutura da informação, a diversidade de estilos cognitivos dos usuários, os processos de negócios aos quais a informação deve atender. Não haverá necessidade de carteirinha nem de registro profissional, haja vista o que a realidade do mercado já fez com a profissão de jornalistas. Haverá sim carência dessas competências. Oportunidade de ouro para as instituições com visão de futuro.


Conselhos e Associações profissionais: as energias desse sistema vivo que é uma categoria profissional têm o desafio de projetarem modelos criativos em que um punhado de profissionais da nova espécie possam capacitar e gerenciar centenas ou milhares de leigos (por que não professores, assistentes sociais, voluntários etc.?) para que sejam facilitadores de leitura, pesquisa e aprendizagem com base no livro e em outros tipos de conteúdo.


E há, dentro das organizações, nas áreas criativas como marketing, pesquisa e desenvolvimento e estratégia (e será que alguma área nas organizações escapará do destino de ter que se tornar criativa?), o desafio de criar a cultura da busca, uso e agregação de valor à informação.
As oportunidades estão aí, e demandam profissionais com visão sistêmica, que compreendam processos e saibam gerenciar projetos de informação.


Temos grandes cabeças em ilhas de competência no país (UFSC, UFMG, UNESP, IBICT etc.), e que poderiam contribuir para a formação profissional nos lugares de maior demanda, especialmente em São Paulo, a capital brasileira dos serviços que podem diferenciar o país na competitividade global. Nesses lugares, onde há enorme carência dessas competências (há bibliotecários desempregados?), é preciso encontrar modelos, presenciais ou virtuais, para utilizar esse capital intelectual que está disponível.


Ou seja, uma alternativa virtuosa ao círculo vicioso da guerra de preços das IES privadas: fazer a roda girar ao contrário, importando para cá as melhores competências, criando currículos de Primeiro Mundo, atraindo para a profissão os melhores candidatos, e se posicionando como parceiro para os RHs das organizações que buscam a excelência nos seus processos. Penso eu que, se não for por aí, a janela de oportunidade para os profissionais da informação - a nova borboleta - pode se fechar rapidamente.


Uma fofoca sobre o olho nas oportunidades contraposto à miopia de marketing: soube ontem, conversando com uma pessoa de Belém, que as maiores redes hoteleiras do mundo estão comprando terrenos agressivamente nessa cidade, com o olho na Copa de 2014. Para os reitores de nossas universidades que estão com o olho na criação do conhecimento que nos fará competitivos globalmente: pode ser hora de criar unidades de Ciência da Informação com padrão de excelência global. Especialmente nas capitais de serviços.


Republiquei numa página um artigo recente dos amigos Levi Bucalem e Vera Stefanov, que a Folha publicou no Dia do Bibliotecário. Não pude resistir a fazer algumas críticas. Veja lá com minhas observações.


Num outro dia, falarei de mim bibliotecário em outras encarnações…

Por Sérgio Storch

http://sergiostorch.com/aos-bibliotecarios-um-pouco-de-“tough-love”/

Nenhum comentário:

Postar um comentário