12 de maio de 2009

BABEL BIBLIOTECÁRIA

No princípio Deus criou o bibliotecário. Disse Deus: "fundabibliotecas por todo o mundo, seleciona os documentos de melhor qualidade,organiza a informação, presta serviços de excelência e vela pelo interessedos usuários.

Mantém atualizado o catálogo e confortável a sala de leitura, porémnão escutes a Voz das Trevas, porque se o fizeres te confundirás edesaparecerás como profissional".

O bibliotecário fez tudo quanto Deus lhe pediu. Ergueu bibliotecas embelos edifícios e nelas colocou todo tipo de documento criado pelo homempara registrar a informação: tabuletas de argila, rolos de papiro oupergaminho, tábuas de pergaminho ou papel, livros, revistas, diários eboletins impressos e toda a gama de documentos iconográficos, audiovisuais,tridimensionais e legíveis por computador, incluindo aqueles disponíveis naInternet.
Inventou e reinventou o catálogo (e com ele a recuperação dainformação), que evoluiu desde as antigas bibliotecas sumárias até asbibliotecas ciberespaciais. O mesmo sucedeu com múltiplas ferramentas emétodos de trabalho: normas de catalogação, sistemas de classificação, vocabulários controlados, a análise por facetas e a indexação pré epós-coordenada, o serviço de referência e o de circulação, incluindo oempréstimo interbibliotecário e a comutação bibliográfica.

Capacitou as pessoas em todo o necessário para acessar a informação.Adotou normas de qualidade e definiu indicadores de desempenho específicospara as bibliotecas, com o fim de avaliar e melhorar seus processos,produtos e serviços. Para tudo ele utilizou a tecnologia de ponta disponívelem cada época e em cada lugar, desde a punção requerida para a escritacuneiforme até o computador e as telecomunicações do século XXI.

Ergueu sua voz contra a censura e em defesa do direito de todos àinformação. Elevou sua carreira aos mais altos níveis universitários,convertendo-a em uma profissão útil, nobre e digna. Entretanto numa manhã, enquanto o bibliotecário realizava suas tarefashabituais, ouviu uma voz rouca e tenebrosa que lhe chamava: "Vem,aproxima-te". O bibliotecário voltou a cabeça e percebeu entre incrédulo esurpreso, a visão de uma árvore seca e retorcida, de negro tronco e negrosramos.

A voz insistiu: "Vem, aproxima-te". Temeroso, mas cheio de curiosidade, o bibliotecário se aproximou comprecaução. Uma sensação sobrenatural se apoderou dele e o negro manto danoite cobriu o local, em pleno dia.

"Vem, aproxima-te, não tenhas medo" - voltou a escutar.

"É a Voz das Trevas?" - perguntou o bibliotecário com ingenuidade."Deus me recomendou que não te escute".

"Não digas bobagens; dialoguemos e verais que esta conversa teinteressa" - disse a Voz.

O bibliotecário se aproximou da estranha planta, o suficiente para veras víboras que se arrastando pelo solo começavam a enroscar-se no tronco.

"Quem é?" - perguntou intrigante a Víbora Primeira, mostrando suavenenosa língua de duas pontas.

"Sou o bibliotecário" - respondeu este com segurança.

"Ha, ha, ha!... Pobre... Em que mundo vive? Não sabes que agora techamas documentalista?".

"Que estás dizendo?" - interveio a Víbora Segunda - "o correto éespecialista da informação ou cientista da informação".

"Gestor de informação, querida, os outros termos já eram" -interrompeu a Víbora Terceira.
"Melhor em inglês, information manager" - opinou a Víbora Quarta - "ese for chefe: "chief information officer" ou "CIO".

"Eu prefiro gestor do conhecimento, knowledge manager ou chiefknowledge officer" - ajuntou a Víbora Quinta com ares de sabe-tudo.

"Mas com esses títulos, ninguém vai saber quem eu sou e o que faço".-protestou o bibliotecário".

"Precisamente, disso que se trata" - informou-lhe a Víbora Sexta -"todo mundo se perguntará o que é que faz essa pessoa, e como ninguém gostade passar por ignorante, limitar-se-ão a dizer... Ahhh! Que interessante!".

"Bibliotecário!" - debochou com desprezo a Víbora Sétima - "Nãoexistes! Desapareceste com o meteoro que extinguiu os dinossauros!".

Ressoavam ainda em sua mente as risadas de zombaria dos répteisinterlocutores, quando o bibliotecário se deu conta de que, repentinamente,a visão havia desaparecido. Invadido pelo temor, se ocultou entre asestantes do depósito.

Dali escutou a voz de Deus que lhe chamava: "Bibliotecáááááaáááário, onde estás?... Que fazes aí?... Por que teescondes?".

"Porque me dá vergonha que me vejam nesta profissão de idiota quetenho" - respondeu o bibliotecário, sem atrever-se a levantar a cabeça dosolo.

"Quem te fez pensar que é uma profissão de idiota? Acaso prestasteatenção á Voz das Trevas?" - perguntou Deus.

"As víboras me chamaram com insistência e não pude evitar..." -murmurou covardemente.

Então, Deus se enfureceu com o bibliotecário e pronunciou seu severocastigo: "Por haver escutado a Voz das Trevas viverás para sempre na confusão efalta de identidade. Tirar-te-ão a Direção da Biblioteca que será ocupada por outrosprofissionais, ainda que não saibam nada a respeito, enquanto o público seráatendido por um empregado administrativo que ganhará mais que tu.

Tu te ocuparás dos processos técnicos, e todos te farão sentir que"somente serves para fazer fichas". Quando solicitares um ajudantecatalogador, te enviarão pessoal de baixa qualificação, em tratamentopsiquiátrico, e nunca te comprarão um tesauro atualizado. Em média, ganharásum salário de fome e nunca conseguirás um estatuto profissional que teproteja".

"Qualquer um virá e te dirá: "não se diz usuário, e sim, cliente" e tuo repetirás como um papagaio, ainda que tenhas deixado a vida parasatisfazer ao usuário. Ou te dirão: "o paradigma da biblioteca não é aconservação mas o acesso" e tu te impressionarás com a frase, embora tenhaspassado séculos facilitando o acesso.

Teu lugar de trabalho será chamado centro de documentação, centro demateriais didáticos, centro de informação ou centro de gestão doconhecimento, e quando a confusão entre todas estas organizações - que nofinal fazem a mesma coisa - for incontrolável, então as chamarás unidades deinformação ou UI.

E é claro, a sociedade não será capaz de diferenciá-las e continuarãochamando-as biblioteca".

"Víboras nacionais e estrangeiras proporão cursos inúteis nos quaisaprenderás apenas que catalogação se chama agora representação descritiva oudescrição bibliográfica e que a classificação passou a ser organização doconhecimento; termos desconhecidos para coisas que tu mesmo inventaste.

Além de ser confundido, pagarás estes cursos a preço de ouro e sairásdeles sabendo o mesmo que sabias antes de inscrever-te".

"Porei inimizade entre os bibliotecários universitários e os debibliotecas públicas e farei proliferar os cursos de Biblioteconomia de 1 a5 anos, onde todos levarão aos mesmos cargos e salários, assim permanecerãoeternamente divididos e frustrados. Jamais conseguirás estar de acordo comoutro bibliotecário".

"Até que chegue o dia em que avalies seriamente tua profissão e tuaprópria terminologia, avalies a ti mesmo e aos numerosos bibliotecários quetêm oferecido sua criativa contribuição para que, durante milênios, os sereshumanos tenham podido acessar a informação. Então, se assim o fizeres ecompreenderes, eu te perdoarei".

Tradução para português por Maria das Mercês Apóstolo.

Revisão por Marcelo Silveira.

Este texto é anônimo e foi lançado na Rede em espanhol por Ana María Martínez Tamayo.

La Plata, 1 de marzo de 2001.

Texto original:

http://www.bnjm.cu/librinsula/2004/mayo/18/documentos/documento52.htm

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